Querida Marta,
Na última carta que lhe enviei falava sobre os três aspectos que me parecem pilares de uma compreensão do Festival e Laboratório Linha de Fuga, quais sejam, o aspecto institucional, o político e o estético. Nesta carta, quero me debruçar sobre o aspecto estético como exercício não apenas de avaliação, mas de abstração em fuga oferecida por cada participante a partir de diferentes dispositivos, tal como é esperado que aconteça na observação participante, a metodologia de documentação que ofereci para estar como documentadora do Laboratório. Na verdade, creio que uma colaboração importante de nosso trabalho para estudos etnográficos em geral, grosso modo, é a percepção de que talvez estejamos colaborando com alguma metodologia de “documentação participante”. Talvez essa expressão já exista e seja própria de outras áreas de pesquisa entre as ciências humanas que futuramente talvez possamos conhecer.
E entre as possibilidades dessa
documentação participante quero deter-me, então, nos tipos de resultados que conseguimos oferecer enquanto documentadoras aliadas a uma curadoria, no mínimo muito interessante.
É preciso destacar que, em abstração, em fuga, não se trata exatamente de resultados o que quero escrever, mas de desejos de aproveitamento de todos os registros de campo que consegui colecionar ao longo do evento. Porque desejo é também uma abstração de resultados. Então, na verdade, penso que a ideia seja perceber os caminhos de fuga que também os participantes percorreram para além de possibilidades científicas previstas ou previsíveis, dando margem a possibilidades de autorias construídas entre lampejos de memória. Nesse caso, é muito importante destacar que o rigor da observação participante depende muito do rigor na coleta e armazenamento de dados empíricos de pesquisa. Talvez daí venham muitos estranhamentos das cátedras, ainda. Os materiais de coleta de prestígio são os inquéritos. De imediato é possível imaginar uma sala escura com uma luminária sob a cabeça de uma pessoa não querida (inquirida), com uma mesa entre ela e um ditador do outro lado no escuro. Esse tipo de metáfora me dá a sensação de que estou salva do meu próprio país, neste momento, quando um ditador é o presidente de um Brasil de fascismos nada infantis, mas igualmente cafona e caipira como das praxes conimbrisenses. Então, se fosse uma questão de simplesmente prescrever resultados, começaria por mim mesma, ainda na condição de participante do Laboratório e não documentadora, afirmando que o melhor resultado foi encontrar uma forma de me manter literalmente viva em terras estrangeiras, mas sem aqueles velhos exílios dos mártires de antigamente, facilitando que a cada momento juntos, nós, a curadoria, as equipes técnicas, os diferentes públicos, as cidades e os participantes, teçamos uma prova do que fui em fuga: um guardanapo de papel, um sabor, uma luz, um caderno com anotações estranhas, centenas de fotografias, amores transitórios, ideias desconexas, sopa todo dia.
Guardei anotações de uma conversa com o
Sergi Faustino sobre como a dança é realmente um tipo de escrita porque suas palavras são projetáveis, mas num caderno sem linhas, mesmo se o corpo é
standart. Esse caderno para ele é a vida, apesar de que sempre haverá um gesto mais projetável que outro. Depende do momento político, por exemplo. Também tenho memórias de
Sara Jaleco, para quem a dança não escreve nada até que se possa escolher ou ser escolhido por um novo trabalho. Mas ela também reconhece que sem corpo não há texto.
Sílvia Coelho acredita que escrever é libertário, mas me pergunta sobre o grau necessário de altruísmo para se fazer uma performance. E eu não sei. Para
Mish esteve em causa a diferença entre as línguas de uma dança para outra. Falamos da língua portuguesa na Europa e suas ausências, mas fiquei pensando bastante se o nível de
non sense que ela alcança em suas performances é fruto de seu inglês australiano e de como o Laboratório poderia ser itinerante ao levar por aí um certo jeito português de sorrir por dentro.
António Azenha chega a acreditar que o contato físico não significa mais proximidade para a conversação, diferente do que eu imaginava, porque se a abstração instalada na relação corpo-espaço, a partir do gesto, me parece pedir algo de coletivo, para o artista, nem sempre. Consigo compreender o que Azenha diz quando penso na
Asli, vinda da Turquia para que tivéssemos certeza de que palavras são doces quando o corpo também for, mas isso não tem nada a ver com a pessoa que dança, de modo que o nível de abstração de um gesto pode conter arranjos guturais de individualidade. Lembro-me de uma conversa com
Federica Folco sobre os eventuais exageros com que artistas acreditam em si mesmos, embora seja essa a ideia, acreditar em si mesmo. No entanto, se tudo que é demais estraga, havemos de imaginar ações coletivas, ainda que sozinhos em um primeiro momento, mas tanto quanto possível, para não sermos repletos de intenções limitadas demais ou expansivas, escorando discursos em ideologias de bolso. Memória e ideologia seria um belo tema para o qual o Laboratório poderia contribuir futuramente. Eu escolheria, para isso, estabelecer conexões entre os trabalhos da
Karina Pino, da
Mari Bley e da
Camila Morello. Em linha de fuga, parece-me possível compreender o que uma vaca, um ser andrógino da Amazônia e uma urna têm em comum, no caso, a consciência histórica de que o corpo é político, mas também emblemático, de modo que Sergi tenha razão. Seus dizeres vão depender do calor do momento e isso me faz pensar que memória e ideologia seriam dois ingredientes que fariam a mesma peça de arte corporal sobreviver ou não ao longo dos tempos. Não acredito que as ideologias sejam ponto de partida para as três, menos ainda, ponto de chegada, embora cada uma tenha sido visionária em fuga: Mari Bley não saberia que incêndios criminosos incentivados por Jair Bolsonaro envergonhariam o Brasil perante o mundo; Karina não sabia que esses crimes se dariam para defender gado de corte e Camila não sabia que as eleições presidenciais no Brasil é o que levariam tudo a isto. Ideologia é um instrumento de localização das memórias.
Pensando em instrumentações não posso deixar de pensar em
Etienne,
João Telmo e
Valentina que, se em princípio não têm muito em comum, no fundo não puderam prescindir de objetos fundamentais para comporem algum dizer em fuga, na maior parte do tempo, sobre si mesmos. Nesse caso, um macacão de pedreiro não é um figurino, nem a pá de fazer cimento, do mesmo modo que um espelho não é para refletir o que se vê diante dele, pelo menos, enquanto um manequim desconjurado o possa. E entre desconjuras encontro os poemas de
Valinho Gigas, as memórias de Zeca Afonso trazidas por
Bruno Caracol e o documentário de
Tiago Cravidão e sinto-me consternada, posto que entendo que meu pensamento os coloca em linha de fuga juntos, porque são portugueses, muito portugueses mesmo, a ponto de eu não conseguir enxergá-los em outros cenários de tão fiéis ao que espelham. Já
Guillem parece me trazer outra perspectiva, uma certa coragem para não ter vergonha de empreender nisso tudo. Certa vez, inventei um rótulo de vinho ao estampar o
flyer do evento numa garrafa, sugerindo que o Laboratório precisaria dessa pegada empreendedora, tão ecológica quanto as demais. Bebemos o vinho que havia, rimos e não mais falamos disso acompanhados por
Nóra, a doçura que escapa de tudo isso e volta em húngaro, sua língua materna em português de gringa. E finalmente, foi de
Saeed que aprendi que dentro do seu eixo todo corpo gira, mas nem todos chegam a Deus. Aliás, e o
Wellington Gadelha? Não veio, que pena.
Abraço e até a próxima,
Janaina