As Intenções

Capítulo I

Em que consiste esta Documentação

Esta secção pretende traçar uma linha que defina o antes e o depois da proposta documental que oferecem, Janaína Behling e Marta Blanco, colegas de documentação, tentando fertilizar rastros metodológicos para edições futuras. Como resultado deste pequeno ensaio, Janaína navega pelas margens da construção de identidades profissionais múltiplas apenas como linguista, embora sejam margens férteis e generosas entre o Linha de Fuga e as esferas académicas do mundo.
Marta reporta o seu olhar de artista e ativista, entrevistando o seu eu, numa conversa entre a abstração e a importância do olhar.

a visão de janaína

A presente Documentação:
as Palavras e um Campo Lexical em Construção

Campo lexical é um conjunto de palavras associadas, pelo seu significado, a um determinado domínio conceitual. E apesar da crença de que conceitos podem ser muito abstratos e que de nada servem para a sociedade, dentro do Linha de Fuga, ao contrário, podem ser imprescindíveis para evidenciar deslocamentos, por exemplo, nas relações estabelecidas entre a ideia de periferia-centro.

E o diálogo com Catarina é uma fonte lexical riquíssima para conceituar o Linha de Fuga, tão rica que seriam necessárias muitas edições do evento, muito tempo e muitos ensaios para sabermos o nível de profundidade com que ele realmente fez e fará sentido para o público da cidade e além. Em outras palavras, é preciso abandonar o ranço aos conceitos para não sermos muito ingênuos no momento de analisar um Festival-Laboratório. Uma consequência dessa ingenuidade pode ser a prática perniciosa, muito comum não apenas em Coimbra, de rotular investigadores como pedantes e então tentar anulá-los, afastá-los das chances de fuga. No entanto, pela conversa com a curadora, muitas palavras importantes estão associadas à caracterização do Linha de Fuga, dado que fazem parte da memória lexical de Catarina e que penetraram todos os poros de todas as atividades sem que sequer tivéssemos percebido. São palavras como linha, fuga, rastro, perspectiva, vontade, desejo, contexto, urgência, observação, encontro, território, diversidade, potencial, conhecimento, complexidade, memória, efêmero. Há verbos significativos que as acompanham: ativar, traduzir, desenvolver, conectar, questionar, descobrir, trazer, avançar. Há, também, hibridismos emprestados e alguns que inventei ao longo da conversa, como glocal, linhadoria, docupante, metodolofuga. As produções textuais são variadas, quando alargado o conceito de texto, ou texto-autor utilizado pela curadoria na entrevista. O que se quer sublinhar é que entre campos lexicais materializam-se derivações de autenticidade do Linha de Fuga.

Neste momento, essa autenticidade se dá e auxilia a contextualização da documentação, uma documentação participante, somente conceituável porque empresto da Etnografia o conceito de observação participante, uma metodologia de investigação extremamente profícua, mas ainda marginalizada por muitos catedráticos. Entende-se que ao criar e fazer circular um conceito relativamente “novo” dentro das tradições de investigação participante realiza-se o que Catarina propõe: desacreditar a relação centro-periferia. A documentação participante, então, deixa de ser fruto de abstrações artísticas experimentais e passa a ser um catalisador de ressignificadores de conceitos especialmente interessados em superar as próprias limitações e até das ciências humanas de algumas contemporaneidades de modo geral.

Documentação participante para Laboratórios efêmeros

Depois de tentar destacar brevemente a importância dos campos lexicais do Linha de Fuga, imagino criar uma espécie de faixa de Möbius para alguma definição dos docupantes, ou seja, documentadores participantes. A faixa pode ser interpretada a partir dessa figura:
Pela figura, é fácil visualizar a faixa de Möbius no espaço como representação do Festival-Laboratório, bastando girar uma meia volta para uma longa tira de papel e colando as duas extremidades, criando uma fita sem fim, não tendo nem dentro nem fora. As imagens a), b), c) e d) têm seu formato modificado a partir do percurso de uma linha vermelha que perpassa um suposto infinito, tendo um ponto vermelho no centro que serve de referencial, no caso, a linhadoria. Tento utilizar a fita de Möbius para ilustrar que a noção de centro-periferia precisa ser derretida em diferentes camadas quando estamos em fuga e, também, para mostrar como isso se deu entre as docupantes, quando conheci Marta Blanco e ela propôs as vídeo-cartas. Creio que em a) ambas as docupantes estavam em momento prévio ao festival, não se conheciam; em b) surgem os primeiros encontros, as conversas soltas; em c) a proposta de alinhamento das expertises oferecidas, quais sejam, habilidades audiovisuais (no caso da Marta) e alguma escrita filosófica (no caso de Janaína); em d) surgem os atravessamentos dados pelo próprio contexto, no caso, ao ser flagrada a própria cidade, seus rituais paralisantes e imaginários sobre o público.

Mas a aplicabilidade da fita é inesgotável. Ela pode estar na caracterização, por exemplo, dos diferentes encontros e desencontros que as docupantes tiveram ao longo do processo, muito especialmente, suponho, pelas distâncias epistemológicas que nos uniam.

Na candidatura para a documentação apresentei a observação participante como metodologia de estudo. A partir do projeto de candidatura, reproduzo dez pontos principais de uma suposta metodolofuga. Nela, apresento dez características que, antes, eram objetivos do projeto de documentação e, agora, são características de um trabalho original. Assim, a documentação participante:

1) Exige imensa capacidade de observação e refinamento constante do olhar dos documentadores, especialmente em eventos que, apesar de efêmeros, são de temporalidade prevista. Nesse caso, não se enfoca na observação a evolução de comportamentos diversos no tempo e no espaço, mas se enfoca as diferentes possibilidades de diálogo sobre temas relacionados ao enfoque da documentação;

2) Não pode prescindir de um enfoque ou tema que, em último caso, diga respeito à área de conhecimento ou outro tipo de identificação dos próprios docupantes. Quem documenta, neste caso, poderia pertencer a qualquer área de estudo ou até mesmo a nenhuma, depende de como e quais esferas da sociedade (acadêmicas ou não) a linhadoria quer pertencer;

3) Não pode prescindir da interação enfoque/documentador/espaços múltiplos de atuação. Isso significa ter disponibilidade para assumir diferentes identidades ao longo e depois do Festival, mesmo sabendo que algumas dessas identidades se dissolverão mais ou menos rápido que outras. Identidades múltiplas, por exemplo, podem fazer com que docupantes sejam confundidos com críticos ou peritos em Artes. É possível que alguns participantes se sintam frustrados, quando não a própria linhadoria, quando perceberem que pode não haver qualquer compromisso com avaliações desse tipo;

4) Afirma e reafirma o papel do evento pela presença de docupantes e linhadoristas, mas estes devem escolher ou negociar em que momento estarão presentes ou não, principalmente se o Festival tiver uma agenda muito intensa de atividades. O que está em jogo é um forte senso de equipe em fuga e não uma lista de presença;  

5) É colaboradora do sucesso do evento, mas para isso não pode se comprometer ou é preferível que não se comprometa com outras atividades, como por exemplo, assistente de produção, secretariado e afins, a menos que seja por desejo dos docupantes;

6) Salienta que os próprios docupantes desconheçam a sua própria imagem, posto que sua (des)construção de identidades múltiplas está em processo de agenciamento;

7) Implica fazer uso de materiais de registro inusitados. Por isso, no contexto do Linha de Fuga, o tema ou enfoque da documentação é uma categoria em construção permanente;

8) Pode ou não ter uma rotina na aplicação de métodos de coleta de dados, inclusive, criando eventos que não eram previstos, como conceder entrevistas a um veículo de comunicação local, como foi meu caso, ou propor entrevistas diversas, inclusive, ao público;

9) Pode abordar os participantes com a tentativa de fortalecer interações, embora essa abordagem esteja suscetível à maior ou menor afinidade dos docupantes com os processos artísticos propostos;

10) Se compromete com as projeções do evento para novos públicos no futuro, no caso, até em nível lexical.

Esses dez passos não são capazes de superar as lacunas deixadas e encontradas num processo de documentação efêmero, tão pouco, falhas e limitações na tentativa de traçar algum estudo linguístico como realmente eficaz. Exceto se considerado o fato de que pretendo escrever cada vez melhor a partir de então.

Ao mesmo tempo, este roteiro ajuda a evidenciar como o Linha de Fuga, especialmente, enquanto Laboratório de práticas artísticas/ científicas resgata o que as ciências humanas deveriam oferecer para seus colaboradores: possibilidades. Ou não.

a visão de marta

O que é Documentar?
Acho que não conseguiria apresentar-te nenhum conceito, a filosofia não é o meu forte. Mas poderia dizer que para mim o mais importante é olhar.

O que é Olhar?
Já disse antes que a filosofia não é a minha área, muito menos a semiótica. Eu ainda estou a aprender a olhar. O meu olhar transforma-se continuamente, acho que é por isso que não consigo definir nada, tenho a sensação de que tudo muda. Dizem os antropólogos que enquanto bebé, aprendi a olhar por empatia, numa tentativa de entender as emoções das pessoas que cuidavam de mim e entravam no meu campo de visão. No entanto, apesar de eu estar há anos a olhar, custa-me tomar consciência do meu olhar. Identificar de onde ou para onde o dirijo ainda requer que eu preste muita atenção. E, é claro, pelo caminho perco-me, a vida varre muita coisa e esqueço o que me tinha proposto a olhar. Sou um ser instável.

Porque quiseste documentar Linha de Fuga?
Por muitas razões. A primeira porque queria deixar o exílio interior que vivo aqui na Galiza, em casa da minha mãe. Depois havia outras. Em Portugal, geralmente sinto-me bem. Adoro fugir. E, claro, gostei do projeto. Situou as documentadoras ao mesmo nível que o resto das artistas. E vindo da Catarina, isso parecia significar que eu poderia ter a liberdade de fazer o que quisesse.
Agora que penso nisso, esta foi provavelmente a razão principal.

Como olhaste para o Laboratório?
A priori, como um encontro demasiado complexo para tentar entendê-lo na sua totalidade. Muita gente ia participar com o objetivo de gerar linhas de fuga. Demasiadas possibilidades para uma mente como a minha, com tendência a devaneios e confusão. Por isso, preparei algumas âncoras antes de começar.
Escolhi um formato e um foco de atenção. Decidi fazer um diário. É algo pequeno, manejável, íntimo. Acho que essa decisão se conecta com o que Janaína mais tarde conceptualizou como documentação participante. Nós, como participantes do Laboratório, fazemos parte da documentação e auto-documentamo-nos. O eu olha e olha-se a si mesmo, é mais um. A documentação nasce de um corpo documental relacionando-se com o seu próprio processo, com os outros corpos e locais; com os corpos com outras vidas e de outros lugares que confluíram neste encontro.
A segunda decisão foi direccionar o olhar para o espaço. O motivo dessa decisão foi influenciado por uma oficina de literatura que tinha acabado de fazer quando saiu a convocatória. Propuseram-nos ler Carlson McCullers e Natalia Ginzburg, focando-nos sobre como elas construíram histórias a partir da descrição dos espaços. De seguida, tinhamos que escrever com o mesmo foco. Essa experiência de construir a partir de algo, à primeira vista, tangencial resultou num relato de uma profundidade e intimidade surpreendentes. Olhar para o laboratório a partir dos espaços poderia ajudar-me a fazer aparecer a complexidade da coisa sem ter que ir ao encontro dela. Creio que olhar para os detalhes significa, inevitavelmente, olhar para o mundo inteiro.

O que encontraste ao olhar Linha em fuga?
Muitas coisas e muitas pessoas, mas para não nos desviarmos da nossa conversa, acho que o que encontrei foi a correspondência entre mim e Janaína.
Os filmes encontras na mesa de edição. Quando te sentas para olhar as imagens, começa uma limpeza necessária e mergulhas para encontrar possíveis conexões e dramaturgias. É ali que começas a entender algo, onde abre portas e onde, às vezes, as fechas, perdida. E é na perda que voltas ao início e pensas no diário, ou no espaço ou nos motores que encontraste ao longo do caminho.
O encontro com a outra documentadora, a linguista Janaína Behling, também foi decisivo para o que fizemos. Desde que nos conhecemos, tínhamos o desejo de partilhar os nossos processos de alguma forma, mas acho que durante muito tempo não nos entendemos. Fomos descobrindo como partilhar cada processo e influenciar-nos uma à outra.  A correspondência, para mim, foi um mecanismo essencial para as duas últimas cartas. A primeira, que é uma espécie de declaração de intenções, saiu do seminário que fizemos na primeira semana com Luciana Fina, mas as outras duas foram desenvolvidas em diálogo direto com a Janaína.

Se me permites, olhando para a documentação final, vejo um olhar estético e político. Talvez haja olhares que passam por aqueles que dizes procurar?
Sim, claro. Porque mesmo que tente, não posso fugir de quem sou. Acho que por isso tento ser o mais honesta possível, ainda que, ultimamente, duvide cada vez mais do valor da honestidade. E acho que se agrava quando o meu nível de misantropia aumenta.

Não é um pouco estranho que fales de misantropia quando as tuas cartas são quase uma produção de retratos?
Os meus níveis de misantropia e humanismo flutuam muito. Creio que por isso mesmo recorro à política, para que me faça sentido trabalhar ou viver.
Quando a Janaína propôs trabalhar sobre a morfologia do gesto, a verdade é que eu não sabia muito bem que diabos ela queria dizer com isso. Para mim, era pura abstração. Mas a Janaína dizia-me coisas incompreensíveis e ao mesmo tempo repletas de possibilidades. Um dia explicou-me que tudo é texto, onde pões o olho é texto. E quando lemos, levamos o que lemos para dentro do corpo. Depois chega a fala, quando repetimos o que lemos. E mais tarde a escrita, onde se materializa, de muitas maneiras possíveis, aquilo que aprendemos. E é aí, na percepção, que a abstração chega. Uma abstração que não acontece sem um corpo que a pratique ou sem um espaço onde ocorra. Porque, segundo Janaína, se não fosse pelo espaço, como é que o corpo saberia o que vai dizer?
Como vês, este tipo de diálogo faz-te pensar e, no meu caso, conectava-se com muitos elementos com os quais estava a trabalhar. Por isso adorava esse diálogo de surdos com Janaína, embora depois eu precisasse descer à terra, à política, para entender tudo melhor.
Para começar a gravar imagens sobre a morfologia do texto, foi importante a leitura de um artigo de Amador Fernández-Savater no qual ele fala do gesto político, da desobediência praticada com o corpo, de imagens frutíferas porque nos emocionam, nos afetam, recriam o nosso olhar, fazem-nos pensar, exigem um movimento que não é uma resposta automática na qual aplicamos os códigos dos nossos estereótipos, mas um novo pensamento, uma nova realidade.
Movo-me melhor na  política que na filosofia.

Queres dizer mais alguma coisa para terminar?
Bem, gostaria de dizer que decidi fazer esta entrevista porque me sobrecarregava a ideia de escrever sobre o meu trabalho. Depois das últimas semanas, em que fiquei presa ao computador, editando dia e noite, precisava de me distrair,  propor um jogo que pudesse fazer a partir do sofá com o meu caderno e a minha caneta lilás. Por isso copiei essa ideia do poeta Pedro Casariego, porque adoro copiar os mestres. Também me acontece com os filmes. Claro que sei a priori que o resultado será muito pior que o original, mas, enquanto isso, jogo e divirto-me. Sou uma pessoa hedonista, ainda que me esqueça muitas vezes.

Às Margens da Curadoria

por Janaina Behling

Conversa com a Curadora
Às Margens da Curadoria

por Janaína Behling

Os métodos de coleta de dados de uma documentação em fuga são muito variados, mas extrapolam largamente os inquéritos clássicos na abordagem às pessoas. Todavia, o inquérito tomou um novo frescor quando a própria curadora do Linha de Fuga, a Catarina Saraiva, aceitou ser entrevistada, de forma a elencar os principais conceitos do evento, indexando que seja possível trabalhar em fuga, no caso, deslocando os inquéritos - gênero discursivo comum a imaginários policiais ou herméticos - para outro lugar da interação humana, no sentido de não afastar os interlocutores entre posições hierárquicas, como é relativamente convencional, mas aproximá-los pelo diálogo transversal e direto.

Da entrevista serão extraídas três perguntas, conforme foram três as dirigidas aos participantes ao longo da documentação, as quais eu gostaria de ter feito também à curadora, sobre morfologia do gesto e memórias. No entanto, imaginando que a caracterização de uma curadoria em fuga já estivesse contida de alguma forma nas respostas de cada um dos participantes, preferi criar condições para construir a voz curadora ouvindo-a “de fora” da atmosfera criada no Laboratório. Estava em questão descobrir o que está dentro e o que está fora de um Laboratório efêmero, esquadrinhando pontos de vista sobre sua localização e sobre a localização de agenciamentos identitários. Apesar dos cortes quase brutais aos quase cento e vinte minutos de conversa, as respostas foram das mais interessantes para contextualizar a própria documentação proposta ao Festival-Laboratório:
Catarina, o que é uma curadoria?
Na minha perspectiva uma curadoria é um encontro entre três vontades: o desejo de dizer algo, um contexto que precisa de ser ativado e artistas que conseguem traduzir essa vontade a partir das suas próprias urgências que acabam por ser também as minhas. Assim, através da observação de um contexto consegue-se desenvolver um programa artístico que pode, através de obras e de expressões e práticas artísticas, ativar questões que são importantes para esse contexto. No fundo tu tens um encontro entre um conceito, artistas e um público. Sendo que “um público” é muito vasto, porque quando eu falo em contexto falo num território e um território tem uma diversidade de perspectivas que podem ser conectadas, mas nem todas são possíveis. Portanto, quando eu faço uma curadoria eu penso no que é importante nesse momento, nesse contexto, nesse território, mas tem muito de subjetivo…

No caso do Linha de Fuga, por exemplo, para mim tinha muita importância pensar o que é um território que se considera periférico, porque Coimbra não é um grande centro urbano. Isto é, se falamos em Portugal, nós temos dois grandes centros urbanos onde estão constantemente sendo ativadas uma série de coisas a nível de práticas artísticas e quando tu sais desses centros há uma forma de apatia, sendo que não é exatamente apatia no caso de Coimbra, mas há algumas coisas que estão adormecidas e que têm potencial para ser ativadas. Não acredito muito neste conceito de periferia... e não acredito na ideia de que só nos grandes centros é que se produz e se ativam coisas interessantes, antes pelo contrário! No Linha de Fuga eu queria desconstruir esta ideia de que fora dos grandes centros urbanos não existe massa crítica, o que não é verdade, na minha perspectiva. E por outro lado, tinha sentido ser em Coimbra, que para além de ser a minha cidade,  é conhecida como a cidade do conhecimento, com uma universidade com mais de setecentos anos e, portanto, conhecida como esse lugar da produção e validação de conhecimento - que eu queria provocar - com a ideia de que há vários tipos de conhecimento que não são académicos mas igualmente válidos. E para questionar, também, o significado de produção e validação do conhecimento. Então, quem são as pessoas interessantes que podem dar diferentes perspectivas de conhecimento? E a partir daí, acrescentamos uma outra camada [de questionamento] que é “qual é o formato correto para desenvolver essas ideias? O que é interessante para este contexto?” No caso do Linha de Fuga eu pensei, em primeiro lugar, na importância de fazer um laboratório de criação artística que trouxesse estas ideias consigo e que estivesse fora dos grandes centros urbanos (Lisboa ou Porto), que juntasse artistas de vários lugares do mundo, cada um com seu background e com sua perspectiva de produção de conhecimento e de práticas artísticas. E quando pensei neste Laboratório que queria fazer em Coimbra, com diferentes perspectivas de olhar e ver o mundo, pensei que sendo que um Laboratório poderia ser uma coisa mais fechada, achei que seria interessante desenvolver em paralelo um Festival que se baseou, precisamente, em pensar que determinados artistas que eu gostaria que estivessem a orientar seminários para o Laboratório, já com um percurso profissional grande, poderiam mostrar as suas obras, aquelas que eu achava que mostravam distintas perspetivas sobre o mundo.

Portanto, como vês, é uma conjugação de vários fatores. Há uma complexidade de pensamento em que, no fundo, aquilo que se pretende é [descobrir] como é que todas estas questões que aí estão, e que partem da observação daquilo que é o território local, o contexto local, mas olhando para um contexto mais global que é o mundo e as suas distintas perspetivas, como é que eu desenvolvo todas essas urgências – minhas - através das urgências dos artistas e das urgências do território.
Ah, que lindo.
É.
Você viu que uma pergunta já... (risos)
Já deu, né Janaína, você sabe que eu falo muito.
O que você acha que funciona no Linha de Fuga?
Olha... há toda uma série de rastros que se deixam. Um deles é assumidamente a própria iniciativa: por um lado um Laboratório, onde vinte artistas estiveram a trabalhar sobre os seus processos, com os colegas, apresentaram processos, fizeram experiências, deram feedback a outros colegas, viram espetáculos, sentiram a cidade. E aí há vários rastros que ficaram. O primeiro é que todos que trouxeram processos artísticos continuaram a trabalhar sobre eles. Para alguns, o Linha de Fuga foi esse espaço onde conseguiram experimentar, confrontar o que estavam a fazer com outras práticas e outras formas de ver e com a possibilidade de alteraram aquilo que trouxeram como suas propostas e essas propostas avançarem sem medo.
É verdade.
E acho muito interessante o que vocês propuseram como documentação, que é fazer duas perguntas muito práticas e uma altamente filosófica…
Mais sem sentido da terra...
Não, não, não, que vai buscar o pensamento de cada um, isto é, como é que cada um consegue explicar... Porque morfologia tem a ver com linguagem. Se o gesto faz parte da linguagem, então, como é que se explica isso? E depois as duas [questões] muito práticas (e poéticas) sobre as memórias, quais são as memórias ativadas a partir de uma fotografia e de uma canção ou poesia trazem o contexto de cada um. Por exemplo, a descrição que as pessoas fazem das fotografias automaticamente as posicionam num ambiente específico, de acordo com a sua história e realidade vivida. E por outro lado, a canção que as pessoas vão buscar ou as poesias que vão buscar as posicionam muito a nível emocional e político. Então, isso permite criar um prisma da diversidade do laboratório a partir somente de três perguntas.

O Laboratório criou a possibilidade de trocas e de afetos. Há pessoas que continuam ligadas umas às outras, a partir dos conhecimentos que se tiveram no Linha de Fuga. Pessoas que se apaixonaram no Linha de Fuga. Portanto há coisas que as pessoas criaram e outras que levaram consigo. A mais interessante é todos levarem a ideia de que Coimbra é uma cidade superativa, super cheia de coisas, quando na realidade, às vezes existe uma falta de efervescência na cidade. Mas isso é para dizer o rastro que é o próprio Linha de Fuga para cidade.
O Linha de Fuga dispensa a crítica?
[risos] Não, de forma alguma. Uma iniciativa que seja consensual deixa de ter interesse, na minha perspectiva. Se é tudo lindo, maravilhoso, bonito, sem nada a dizer, alguma coisa está muito errada. Então, acho que o Linha de Fuga merece críticas. Aliás, há pessoas a criticar fora do Linha de Fuga e depois fiz um questionário a todos vocês para ter um feedback e o que consideraram que poderia melhorar, ou deixar de existir ou que é que faltou. E, portanto, esta é uma forma também de vos provocar a fazer crítica. Houve críticas, nomeadamente, ao cansaço que isto tudo provocou...Mas também provocou um ambiente de crítica positivo entre todos. As sessões de feedback que fazíamos aos processos de todos foram verdadeiros momentos de crítica e pensamento coletivo que, na minha perspetiva foram muito generosos. Inclusivamente tu mesma dirigiste uma das sessões que faz com que também cada um de vocês tenha levado uma forma de experimentar a crítica, né?

Nota da Curadora sobre a Documentação Linha de Fuga 2018

Linha de Fuga foi um laboratório onde a possibilidade de criar, criticar, falhar, experimentar e produzir conhecimento esteve sempre ativa.

A provocação sobre a validação do conhecimento que se fez à Academia veio através de uma ligação com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que abriu este diálogo com a maior generosidade, confrontando um grupo de alunos de doutoramento sobre outras possibilidade de produção de conhecimento, especificamente através das investigações e práticas artísticas presentes no laboratório.

Para mim, era evidente desde o início que a documentação seria uma forma de evidenciar essa produção de conhecimento, ao mesmo tempo que demonstraria a diversidade de perspetivas existentes nesta iniciativa. Janaína e Marta foram seleccionadas como documentadoras participantes, para pensar como se documenta o efémero e o que seria interessante transmitir aos que não participaram. Cada uma delas apresentou-se com uma proposta muito distinta e interessante; Janaína, uma linguísta e académica e Marta, uma artista audio-visual e ativista.

Existia a possibilidade que cada uma seguisse o seu caminho separada ou paralelamente, mas quando se conheceram disseram-me que queriam juntar as duas vontades, achei maravilhoso. O processo individual tornou-se coletivo, sem esquecer as vontades de ambas e as intenções da documentação: documentar o efémero, propondo uma prática de arquivo. Tinham carta branca para fazer o que achassem melhor, elas não traziam um processo artístico, tal como os seus colegas de laboratório. Para mim, documentar o efémero é um ato praticamente impossível, assim que assumo que esta prática é, acima de tudo, um ato de criação, cheio de subjetividade e só poderia funcionar na existência de uma liberdade total.