O que é Documentar?
Acho que não conseguiria apresentar-te nenhum conceito, a filosofia não é o meu forte. Mas poderia dizer que para mim o mais importante é olhar.
O que é Olhar?Já disse antes que a filosofia não é a minha área, muito menos a semiótica. Eu ainda estou a aprender a olhar. O meu olhar transforma-se continuamente, acho que é por isso que não consigo definir nada, tenho a sensação de que tudo muda. Dizem os antropólogos que enquanto bebé, aprendi a olhar por empatia, numa tentativa de entender as emoções das pessoas que cuidavam de mim e entravam no meu campo de visão. No entanto, apesar de eu estar há anos a olhar, custa-me tomar consciência do meu olhar. Identificar de onde ou para onde o dirijo ainda requer que eu preste muita atenção. E, é claro, pelo caminho perco-me, a vida varre muita coisa e esqueço o que me tinha proposto a olhar. Sou um ser instável.
Porque quiseste documentar Linha de Fuga?
Por muitas razões. A primeira porque queria deixar o exílio interior que vivo aqui na Galiza, em casa da minha mãe. Depois havia outras. Em Portugal, geralmente sinto-me bem. Adoro fugir. E, claro, gostei do projeto. Situou as documentadoras ao mesmo nível que o resto das artistas. E vindo da Catarina, isso parecia significar que eu poderia ter a liberdade de fazer o que quisesse.
Agora que penso nisso, esta foi provavelmente a razão principal.
Como olhaste para o Laboratório?
A priori, como um encontro demasiado complexo para tentar entendê-lo na sua totalidade. Muita gente ia participar com o objetivo de gerar linhas de fuga. Demasiadas possibilidades para uma mente como a minha, com tendência a devaneios e confusão. Por isso, preparei algumas âncoras antes de começar.
Escolhi um formato e um foco de atenção. Decidi fazer um diário. É algo pequeno, manejável, íntimo. Acho que essa decisão se conecta com o que Janaína mais tarde conceptualizou como documentação participante. Nós, como participantes do Laboratório, fazemos parte da documentação e auto-documentamo-nos. O eu olha e olha-se a si mesmo, é mais um. A documentação nasce de um corpo documental relacionando-se com o seu próprio processo, com os outros corpos e locais; com os corpos com outras vidas e de outros lugares que confluíram neste encontro.
A segunda decisão foi direccionar o olhar para o espaço. O motivo dessa decisão foi influenciado por uma oficina de literatura que tinha acabado de fazer quando saiu a convocatória. Propuseram-nos ler Carlson McCullers e Natalia Ginzburg, focando-nos sobre como elas construíram histórias a partir da descrição dos espaços. De seguida, tinhamos que escrever com o mesmo foco. Essa experiência de construir a partir de algo, à primeira vista, tangencial resultou num relato de uma profundidade e intimidade surpreendentes. Olhar para o laboratório a partir dos espaços poderia ajudar-me a fazer aparecer a complexidade da coisa sem ter que ir ao encontro dela. Creio que olhar para os detalhes significa, inevitavelmente, olhar para o mundo inteiro.
O que encontraste ao olhar Linha em fuga?
Muitas coisas e muitas pessoas, mas para não nos desviarmos da nossa conversa, acho que o que encontrei foi a correspondência entre mim e Janaína.
Os filmes encontras na mesa de edição. Quando te sentas para olhar as imagens, começa uma limpeza necessária e mergulhas para encontrar possíveis conexões e dramaturgias. É ali que começas a entender algo, onde abre portas e onde, às vezes, as fechas, perdida. E é na perda que voltas ao início e pensas no diário, ou no espaço ou nos motores que encontraste ao longo do caminho.
O encontro com a outra documentadora, a linguista Janaína Behling, também foi decisivo para o que fizemos. Desde que nos conhecemos, tínhamos o desejo de partilhar os nossos processos de alguma forma, mas acho que durante muito tempo não nos entendemos. Fomos descobrindo como partilhar cada processo e influenciar-nos uma à outra. A correspondência, para mim, foi um mecanismo essencial para as duas últimas cartas. A primeira, que é uma espécie de declaração de intenções, saiu do seminário que fizemos na primeira semana com
Luciana Fina, mas as outras duas foram desenvolvidas em diálogo direto com a Janaína.
Se me permites, olhando para a documentação final, vejo um olhar estético e político. Talvez haja olhares que passam por aqueles que dizes procurar?
Sim, claro. Porque mesmo que tente, não posso fugir de quem sou. Acho que por isso tento ser o mais honesta possível, ainda que, ultimamente, duvide cada vez mais do valor da honestidade. E acho que se agrava quando o meu nível de misantropia aumenta.
Não é um pouco estranho que fales de misantropia quando as tuas cartas são quase uma produção de retratos?
Os meus níveis de misantropia e humanismo flutuam muito. Creio que por isso mesmo recorro à política, para que me faça sentido trabalhar ou viver.
Quando a Janaína propôs trabalhar sobre a morfologia do gesto, a verdade é que eu não sabia muito bem que diabos ela queria dizer com isso. Para mim, era pura abstração. Mas a Janaína dizia-me coisas incompreensíveis e ao mesmo tempo repletas de possibilidades. Um dia explicou-me que
tudo é texto, onde pões o olho é texto. E quando lemos, levamos o que lemos para dentro do corpo. Depois chega a fala, quando repetimos o que lemos. E mais tarde a escrita, onde se materializa, de muitas maneiras possíveis, aquilo que aprendemos. E é aí, na percepção, que a abstração chega. Uma abstração que não acontece sem um corpo que a pratique ou sem um espaço onde ocorra. Porque, segundo Janaína, se não fosse pelo espaço, como é que o corpo saberia o que vai dizer?
Como vês, este tipo de diálogo faz-te pensar e, no meu caso, conectava-se com muitos elementos com os quais estava a trabalhar. Por isso adorava esse diálogo de surdos com Janaína, embora depois eu precisasse descer à terra, à política, para entender tudo melhor.
Para começar a gravar imagens sobre a morfologia do texto, foi importante a leitura de
um artigo de Amador Fernández-Savater no qual ele fala do gesto político, da desobediência praticada com o corpo, de imagens frutíferas porque nos emocionam, nos afetam, recriam o nosso olhar, fazem-nos pensar, exigem um movimento que não é uma resposta automática na qual aplicamos os códigos dos nossos estereótipos, mas um novo pensamento, uma nova realidade.
Movo-me melhor na política que na filosofia.
Queres dizer mais alguma coisa para terminar?
Bem, gostaria de dizer que decidi fazer esta entrevista porque me sobrecarregava a ideia de escrever sobre o meu trabalho. Depois das últimas semanas, em que fiquei presa ao computador, editando dia e noite, precisava de me distrair, propor um jogo que pudesse fazer a partir do sofá com o meu caderno e a minha caneta lilás. Por isso copiei essa ideia do poeta
Pedro Casariego, porque adoro copiar os mestres. Também me acontece com os filmes. Claro que sei
a priori que o resultado será muito pior que o original, mas, enquanto isso, jogo e divirto-me. Sou uma pessoa hedonista, ainda que me esqueça muitas vezes.